Devemos abandonar a democracia? (Solução do teorema de Arrow)

Pedro Ruas
7 min readMay 31, 2021

O teorema de Arrow causou um impacto muito grande na teoria da escolha social. A partir dele o debate sobre a teoria do bem-estar se tornou ainda mais difícil. O teorema demonstra a impossibilidade de agregar preferências individuais em uma única coletiva que se mantenha logicamente ordenada. Ou seja, na prática se entende que as decisões coletivas ferem pressupostos básicos de uma escolha racional. A partir disso se torna muito difícil afirmar que as escolhas coletivas refletem diretamente a preferência da sociedade ou a vontade do povo.

Neste texto será tratado primeiro no que consiste o Teorema de Arrow, as consequências práticas do seu resultado, a crítica de Amartya Sen ao teorema, que gera uma nova forma de tratar o tema da escolha social e a conclusão defendendo uma visão pragmática da democracia considerando as contribuições dos dois autores.

O que é o teorema de Arrow?

O teorema de Arrow prova a impossibilidade de se agregar diversas preferências em apenas uma de forma a respeitar os pressupostos de uma racionalidade da teoria da escolha, os axiomas de completude e transitividade. O que isso quer dizer?

Dentro da microeconomia uma escolha racional, ou logicamente ordenada tem uma formulação bem simples:

Axioma 1 (Completude): A escolha precisa ser completa, isso quer dizer que se o indivíduo prefere A a B (A > B) então ele não pode ao mesmo tempo preferir B a A (B > A). Ou seja, o indivíduo é capaz de ordenar quem é preferível a o que.

Axioma 2 (Transitividade): Se o indivíduo prefere A a B (A > B) e B a C (B > C) então por consequência ele prefere A a C ( A > C).

Assim se cria uma uma preferência completa e transitiva A > B > C, onde A é preferível a B e B é preferível a C. Esses são os axiomas básicos de uma escolha racional. Há ainda outros, mas que não são necessários para entender o básico da questão. Esses pressupostos são bem aceitáveis. Um exemplo simples para entender melhor. Imagine que um agente prefere Apartamento a Casa e Casa a Carro.

Apartamento > Casa > Carro

Se um agente tem um carro e consegue trocar por uma casa, e depois uma casa por um apartamento, não faz sentido se no final ele voltar a trocar o apartamento pelo carro. Carro ser preferível a um apartamento nesse caso é uma contradição lógica, pois fere o princípio de transitividade. Se isso acontecesse a troca seria cíclica e não produziria um resultado final.

(Carro > Apart) => Contradição

Seguindo esses pressupostos bem simples Arrow demonstra que se tentarmos agregar as preferências de vários indivíduos em apenas uma, chegamos em uma contradição lógica, pois se torna impossível criar uma ordem completa e transitiva. Imagine 3 grupos de pessoas com 3 ordens de preferências distintas que precisam votar para saber quais políticas públicas devem ser aplicadas.

  1. Mais Armas > Menos Burocracia > Mais Escolas
  2. Menos Burocracia > Mais Escolas > Mais Armas
  3. Mais Escolas > Mais Armas > Menos Burocracia

Eles escolhem uma votação de 3 turnos. Se votarem primeiro Armas vs Menos Burocracia, A e C votam por Mais Armas e Armas ganha. Depois votamos Armas vs Escola, B e C votam em Escola, Escola ganha.

Assim a preferência coletiva por esse tipo de votação seria:

Escola > Armas > Menos Burocracia.

Porém, essa ordem de escolha fere a transitividade. A prova é que basta mudar o sentido da votação que se torna diferente o resultado. Se votarmos Escolas vs Burocracia, A e B votam por menos burocracias, burocracia ganha. Depois votamos Menos Burocracia vs Armas, A e C votam por Armas. Armas ganha.

Dessa forma, a preferência coletiva encontrada é:

Armas > Escola > Burocracia.

Conclusão, dificilmente vai haver uma ordem de escolhas que efetivamente reflete a vontade coletiva dos indivíduos. Essa ordem criada não é completa nem transitiva, sendo portanto uma escolha não racional nos termos básicos que impomos inicialmente. A consequência prática é que quando se agrega diversas preferências diferentes, como fazemos em qualquer votação democrática, o resultado é em boa parte determinado pela forma de votação que se escolhe usar. Uma votação para presidente pode ter resultados completamente diferentes dependendo da quantidade de turnos que a disputa apresenta, mesmo que as preferências dos indivíduos continuem as mesmas.

Isso é uma conclusão um tanto devastadora, se a democracia de fato não reflete uma escolha coletiva racional, uma escolha logicamente ordenada, então ela deve ser abandonada? Dentro da economia isso impacta diretamente a teoria do bem-estar, pois na formulação de Bergson e Samuelson, ela pressupõe que as escolhas coletivas devem refletir as preferências dos indivíduos. Sem alguns pressupostos básicos para alocação de recursos como formular que tipo de política pública deve ser implantada?

Amartya Sen e o Teorema de Arrow

Assim como Arrow, Amartya Sen também foi laureado com o Nobel de economia por suas contribuições em diversas áreas como a da escolha social. Sen traz algumas críticas diretas ao teorema de Arrow e também as formulações da teoria do bem-estar como um todo. Dois pontos que destaco da crítica de Sen se dão sobre possibilidade de ordenações incompletas e a pobreza informacional.

Completude, Transitividade e Ordenações Incompletas.

Para Sen a ideia de que uma ordem incompleta, como acontece quando tentamos agregar preferências distintas, ser uma escolha irracional é falha. Para ele, nem toda escolha racional precisa ser completa e transitiva. Imagine a seguinte situação:

Ao chegar em um mercado você é incapaz de ordenar perfeitamente suas preferências sobre a utilidade das mercadorias que pode escolher. Dessa forma, é incapaz de ordenar as as mercadorias de tal forma que consiga saber qual ordem trará o maior ganho, a maior utilidade. Ainda que tenha esse problema de não ter uma ordem perfeita de escolha, a opção de aceitar uma ordem de preferências incompleta, imperfeita, ainda é mais racional que não executar escolha alguma. Ou seja, é melhor sair do mercado com suas compras, mesmo que essa não seja a melhor opção de todas, do que não fazer nenhuma compra. A escolha mais racional é a de não fazer a pior escolha, nesse caso a de não comprar.

O mesmo vale para a democracia, mesmo que ela não reflita de fato uma ordem logicamente ordenada de preferências da sociedade, é mais racional ter essa ordem incompleta do que não ter ordem alguma. O importante é que não se escolha uma alternativa evidentemente inferior, nesse caso a de não fazer escolha alguma. Nas palavras de Sen:

A racionalidade exige completude? É difícil ver por que deveria. Não ser capaz de ranquear pode ser frustrante, mas por si mesma dificilmente poderia ser vista como um fracasso da racionalidade […] Pode ser argumentado que a escolha racional baseada em ordenações incompletas requer somente que uma alternativa inferior não seja escolhida. Isso teria exigido que o asno de Buridan escolhesse qualquer um dos montes de feno, mas não nenhum deles, que era claramente uma alternativa inferior. Sen e Williams (1982, p. 17 apud Beltrame e Mattos).

Pobreza Informacional

Outro ponto importante da crítica de Sen a Arrow e a teoria do bem-estar como um todo está na pobreza informacional. Para ele, a alocação de recursos não deve levar em conta apenas as utilidades individuais dos indivíduos como pressuposto dentro da teoria da escolha social, é preciso que haja uma teoria moral e ética por trás para que a aplicação das políticas faça sentido.

Segundo Beltrame e Mattos (2017), a interpretação de Sen em relação ao Teorema de Arrow é que ele não prova a impossibilidade de uma escolha racional coletiva, ele prova a impossibilidade de se fazer essa escolha levando em conta apenas as utilidades individuais. Ele defende que se deve considerar outras informações como princípios éticos do tipo combate a pobreza, a discriminação, a desigualdade e defesa da liberdade. Dessa forma, devemos ter eles como restrições, mesmo que a escolha sociedade ou o que for considerado eficiente de pareto dentro de um teorema de bem-estar não chegue a esse equilíbrio.

A partir dessas ideias Sen desenvolve sua “Abordagem das Capacitações” (Beltrame e Mattos, 2017), onde ele defende que

a capacidade é um tipo de liberdade: a liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos (ou, menos formalmente expresso, a liberdade para ter estilos de vida diversos)(Sen, 2000).

Seguindo essa linha de pensamento, Sen abre todo um debate ético dentro da economia em muitos dos seus trabalhos como em “Sobre Ética e Economia” publicado em 1999 e “Desenvolvimento como Liberdade” publicado em 2000. Esses debates são importantes formas de guiar o entendimento sobre a justiça social e liberdades, quais políticas públicas devem ser aplicadas ou não e que tipo de instituições devemos buscar.

Conclusão

Pensando de forma pragmática, a justiça por trás das escolhas democráticas não está na sua capacidade de efetivamente refletir a vontade do povo ou a escolha racional da sociedade. Se esse fosse o motivo para a existência dela, realmente ela estaria condenada, dado que em muitos aspectos (que vão além do Teorema de Arrow) ela não reflete isso. A justiça por traz da democracia está por uma distribuição de poder mais equitativa, o que possibilita que todos tenham pelo menos a chance de terem parte de suas demandas atendidas e por que essas regras historicamente terem retornos melhores que qualquer outro tipo de organização. Esse jogo mais equitativo é provavelmente o que a torna sustentável, pois mesmo que os resultados de uma eleição não sejam agradáveis o custo de abandonar a democracia tende a ser muito mais alto que buscar seus interesses dentro dela, respeitando as regras do jogo.

Dessa forma, por uma simples questão pragmática a conclusão é que a democracia não deve ser abandonada. Efetivamente ela não reflete de forma direta “a vontade do povo”, mas talvez reflita uma ordem incompleta e cria regras do jogo que tornam a disputa de poder sustentável. Além disso, entender a democracia de forma realista, ao invés de uma visão mais romântica, cria um ceticismo salutar para lidarmos quando esta não chega a equilíbrios desejáveis. Esse debate também traz reflexões quanto à busca de uma democracia estendida para alocação de todos os recursos da sociedade, se isso não é uma ótica mais romântica do que pragmática de se pensar a forma mais justa e eficiente de se fazer a escolha social, mas este é outro debate.

Pedro Bento Ruas

Referências:

BELTRAME, Bruno and MATTOS, Laura Valladão de. As críticas de Amartya Sen à teoria da escolha social de Kenneth Arrow. Nova econ. [online]. 2017, vol.27, n.1, pp.65–88. ISSN 1980–5381. https://doi.org/10.1590/0103-6351/2790.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

--

--