Evangelion, Freud, Hinduísmo e o Budismo (Parte 1: A Seele)

Pedro Ruas
6 min readFeb 19, 2024

Evangelion é uma obra de animação japonesa que surpreende o expectador ao iniciar com um arco de crianças entrando em robôs para enfrentar monstros chamados de anjos, que visam destruir a humanidade, mas se desenvolve para uma discussão existencial psicológica. Essa surpresa junto as referências a diversas religiões são o que prendem, geram fãs e discussões infinitas sobre o anime. Serão 3 textos para explicar 3 partes, o primeiro (este texto) analisando a Seele, o segundo Gendo Ikari o pai do protagonista, o terceiro o protagonista Shinji Ikari. A análise será feita baseada no livro “O mal-estar na civilização” de Freud olhando a questão psicológica dos personagens, mas especificamente as questões da formação do Eu e da religião na psicanálise. Uma observação importante é que Eu e Ego são traduções do conceito chamado Ich, usada por Freud no alemão, que literalmente quer dizer “eu”. Então no texto elas aparecem como sinônimos.

1° Parte: A Seele

A Seele é uma organização religiosa secreta por traz da Nerv. Enquanto a Nerv parece publicamente se preocupar com o uso dos “robôs” gigantes (chamados EVAs) para defender a terra dos anjos, a Seele tem um objetivo maior por trás, a “instrumentalização humana”.

O plano de instrumentalização humana aparece de algumas formas dentro e fora da série. A teoria principal (que aparece de forma mais evidente no Neon Genesis Evangelion) é que a Seele pretende unir toda a humanidade em uma coisa só. Isso seria uma forma de acabar com as guerras e as lutas individuais da humanidade. Na prática, isso se traduz numa espécie de genocídio, onde todos irão morrer ou para ser mais exato, se tornar um mar laranja chamado LCL.

Esse aspecto parece ser uma metáfora para três coisas. A primeira é a questão do suicídio, uma forma de escapar da dor inerente a vida. Outro ponto seria uma referência principalmente as religiões asiáticas, a uma visão negativa da vida e da individualidade, do Eu, do ego. A terceira, a uma crítica de Freud direcionado ao “sentimento oceânico” que existe nas religiões.

Budismo e Hinduísmo

Uma observação antes de iniciar essa parte é que existem muitas vertentes dentro do budismo e hinduísmo. As abordagens que trago aqui são as que pra mim se encaixam melhor na perspectiva que o anime traz.

No budismo temos o “Atman”, que geralmente se associa a ideia do Eu, do ego, uma essência. O Atman na verdade não existiria de fato, seria uma espécie de ilusão. Mas esse sentimento individual, a ideia de Eu, do ego seria fonte de muitas de nossas dores e problemas. Dessa forma, há uma busca pelo “Anatman”, o não-eu, onde perceberíamos que de fato não somos simples seres individuais, mas parte de um todo. Um detalhe importante, uma outra tradução de Atman é alma e Seele é uma palavra em alemão que também significa alma.

Enquanto no budismo não existiria uma essência do eu, o Atman, seria uma espécie de ilusão que se busca libertar para alcançar o não-eu o Anatman, no hinduísmo o atman seria uma essência imutável existente dentro de cada um, porém ela estaria além da própria personalidade, corpo, mente, um eu além do próprio Eu, do ego. Além disso, todos os seres teriam esse Atman, que na verdade fazem parte de um todo, inclusive os deuses. No “Chandogya Upanishad” é usado a metáfora de vários rios que desembocam todos em um mesmo oceano, então todos os seres teriam essa essência que na verdade faz parte do todo, o “Brhaman”.

Novamente isso se conecta com a metalinguagem do desenho onde todos os seres estão separados pelos campos A.T, que é o que nos separa como seres individuais. Ao retirar esse campo todos se tornam o LCL que no fim se transforma no oceano laranja.

Nas duas religiões essa busca também tem um sentido maior que é se libertar do ciclo de dor e sofrimento, o ciclo de reencarnação ou renascimento, o que eles chamam de “samsara”. Esse estado no hinduísmo pode ser chamado de nirvana, moska ou kayvalia. No budismo seria o vimoksha, nirvana ou bodhi.

Esse estado pode ser alcançado de algumas formas, uma delas a meditação. Acredito que sejam traduções mais ocidentais, mas esse sentimento ou objetivo na meditação é chamado de “aniquilação do eu” ou do “ego”, “self-annihilation”. Esse sentimento é algo bastante pesquisado e que hoje existe até de forma independente das religiões. Na série essa parece ser a busca da Seele, a aniquilação da humanidade, do Eu de cada humano, porém exposta de maneira mais visual.

Crítica Psicanalítica

É perceptível que o autor critica essa perspectiva no anime e isso fica mais claro quando entendemos que o autor parte de uma visão psicanalítica. Não por coincidência essa perspectiva é trazida pelos vilões e no final é justamente essa aniquilação total do ego da humanidade que Shinji tenta evitar. Ele se recusa se tornar um com a Rey/Lilith e isso representa uma afirmação da sua individualidade, o entendimento que a vida vale a pena ser vivida mesmo com dor e sofrimento, que essas dores fazem parte dela. Em resumo, ele está indo contra a negação da vida como ela é, contra uma fuga dessa realidade pelo suicídio e contra a busca da aniquilação do ego, contra a busca pelo sentimento oceânico de se sentir parte do todo.

Mas há pontos ainda mais específicos na leitura Freudiana dessa questão. Freud era um crítico das religiões e um dos pontos que ele escolhe criticar em “O Mal-Estar na Civilização” é justamente a busca por esse “sentimento oceânico” (termo que ele tira de uma conversa com seu amigo, Romain Rolland, que estudava o hinduísmo). Freud fala sobre a descrição desse sentimento que Rolland faz:

“Trata-se de um sentimento que ele gostaria de designar como uma sensação de ‘eternidade’, um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras — ‘oceânico’, por assim dizer”

Não é atoa o uso dessa imagem de oceano. Já citei anteriormente o texto Chandogya Upanishad, mas nesse caso acredita-se que Rolland retira ele de Ramakrishna, que por sua vez parece ter se baseado no texto chamado Astavakrasanhita.

Para Freud esse sentimento religioso seria fruto de um “infantilismo psíquico” na busca para lidar com neuroses individuais.

“A religião estorva esse jogo de escolha e adaptação, ao impor igualmente a todos o seu caminho para conseguir felicidade e guardar-se do sofrimento. Sua técnica consiste em rebaixar o valor da vida e deformar delirantemente a imagem do mundo real, o que tem por pressuposto a intimidação da inteligência. A este preço, pela veemente fixação de um infantilismo psíquico e inserção num delírio de massa, a religião consegue poupar a muitos homens a neurose individual. Mas pouco mais que isso. Existem, como dissemos, muitos caminhos que podem levar à felicidade, tal como é acessível ao ser humano, mas nenhum que a ela conduza seguramente. Tampouco a religião pode manter sua promessa.”

Essa busca do sentimento do todo também está ligada a formação do Eu, do ego, ainda na infância. Inicialmente não distinguimos a separação entre nosso Eu, nossa mãe e o resto do mundo. Esse sentimento ali presente aos poucos vai sendo alterado conforme percebemos que parte dos prazeres e sofrimentos vem de fora e outra parte vem de dentro de nós mesmos. Esse “primário sentimento do Eu” se preserva dentro de nós e “seus conteúdos ideativos seriam justamente os da ausência de limites e da ligação com o todo”.

Dessa forma, esse “sentimento oceânico” também pode ser visto como um “infantilismo psíquico” porque ele está ligado a busca de um sentimento que deixamos de ter na criação do nosso próprio Eu. Então a aniquilação do próprio ego, da ideia de Eu, nada mais é que uma forma inadequada de lidar com os próprios problemas psíquicos. Esse é o problema da Seele.

Pedro Bento Ruas

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